Tenho uma amiga que mora na Europa há anos. Vive com a filha
num apartamento de frente para um parque, tem um carro, um emprego e um
namorado. Em tese, ela não tem do que se queixar, mas conversávamos outro dia
sobre o que significa estar tudo bem. Para ela, tudo bem é experimentar novas
formas de existir. A gente assina um contrato de locação de um imóvel, se
acostuma com a mercearia da esquina e quando vê está enraizado num estilo de
vida que se repete dia após dia, sem testar nosso espanto, nossa coragem, nossa
adaptação ao novo. Humm. O que você está inventando?, perguntei a ela.
- Vou morar num barco.
Ainda bem que eu estava sentada. Pensei: “Essa
garota é maluca”. E logo: “Que inveja”.
Tenho zero vontade de morar num barco. Minha inveja foi do
desapego e da facilidade com que ela escreve capítulos surpreendentes da sua
biografia. “Tenho coisas demais, Martha. Livros demais, roupas demais,
móveis demais. Está na hora de viver com menos para poder redefinir o
significado de espaço, tempo, silêncio”. O gatilho da nossa conversa foi o
documentário Minimalism (disponível na Netflix), que escancara a estupidez do
consumo compulsivo, como se ele pudesse preencher nosso vazio. Vazio se
preenche com arte, amor, amigos e uma cabeça boa. Consumir feito loucos só
produz dívidas e ansiedade.
Temos perdido tempo, nas redes sociais, criticando o bandido
dos outros e defendendo o nosso, sem refletir que o caos político e social têm
a mesma fonte: nossa relação doentia com o dinheiro. A ideia de
“poder” deveria estar associada à gestão do ócio, às relações
afetivas, ao contato com a natureza e à eficiência em manter um cotidiano
íntegro, produtivo e confortável (nada contra o conforto), no entanto, “poder” hoje é sinônimo de hierarquia, acúmulo de bens, ostentação e
lucratividade non-stop. É por isso que, para tantas pessoas, é natural
incorporar benefícios imorais ao salário, ganhar agrados de empreiteiras e fazer
alianças com pessoas sem afinidades, mas que um dia poderão vir a ser úteis.
A sociedade não se dá conta do grau de frustração que ela
mesma produz e continua cedendo a impulsos. Uma vez, eu estava na National
Portrait Gallery, em Londres, quando, na saída, passei pela loja do museu e
percebi, ao lado do caixa, um aquário cheio de latinhas de metal à venda, pouco
maiores que uma moeda. Era manteiga de cacau no sabor “chocolate &
mint”.
Sem hesitar, comprei uma latinha e trouxe-a comigo para o
Brasil: hoje ela reside na bancada do banheiro, intocada, para me lembrar de
como se pode ser idiota - eu estava dentro de um dos maiores museus do mundo e
mesmo assim fiquei tentada a comprar a primeira besteira que vi. O exemplo é
bobo, mas ilustrativo de como certos gritos ecoam dentro de nós 24 horas:
Compre! Leve! Aproveite! Você nunca mais será o mesmo depois de usar a
triunfante manteiga de cacau da National Gallery!
O único excesso que preciso é de consciência para não me
deixar abduzir por essa forma equivocada de dar sentido à vida.