Desde quando me lembro, família tinha para mim uma
importância extraordinária. Meu pai a considerava muito. Era a árvore, com raiz
e galharia, com sombra, com tempestade, ramos caindo, raios atingindo, mas
estava ali, a velha árvore. Eu, menina intrometida, de orelhas em pé ouvindo
conversas adultas, pois durante alguns anos fui a única criança na casa,
absorvia aquelas tramas, dramas, comédias, e coisas ternas e alegres que
passavam como fios de teia de aranha entre tantas pessoas.
Eu adorava os almoços: avôs, avós, tios, tias, primos,
primas. Aquilo me dava uma extraordinária sensação de proteção e pertença. E
tudo se refletia num grande espelho diante da mesa de jantar. Também me
fascinavam - não foi por nada que décadas depois comecei a escrever sobre laços
familiares, embora nada a ver com aquela minha família - as conversas e
posturas, que em qualquer grupo podem passar da inocência à bizarrice. Sentada
à mesa, tendo de me esticar para manejar os talheres, embora posta sobre almofadas,
com as perninhas balançando no ar, mais do que comer ou beber meu suco, eu
espiava as pessoas.
Tomava um distanciamento involuntário, que me divertia e
assustava: as pessoas pareciam salsichas enormes, com tufos de cabelo em cima,
buraquinhos com olhos dentro, que giravam, outro buraquinho que se abria e
fechava para receber comida ou soltar palavras. Ali aprendi que palavras podem
ser plumas ou punhais - e que significam muito mais do que aquilo que
expressam. Que uma inflexão muda o sentido, de amoroso para crítico; e que as
mãos complementam tudo, com arabescos bailarinos por cima dos pratos.
Talvez tenha nascido assim meu encanto pelas palavras, pelo
que dizem nos sons ou letras, e mais ainda nos espaços brancos ou silêncios. Ou
isso simplesmente veio comigo como a cor dos olhos e dos cabelos, um sinal
qualquer. Para mim, foram sempre motivo de felicidade, palavras como balas de
tantos sabores e cores, ou pedrinhas coloridas que eu revirava na boca como se
fossem pitangas ou uvas.
Sou uma mulher das palavras, e família tem entre elas um
lugar especial: mais do que dissidências, importam as semelhanças; mais do que
contradições, reinam os encontros; mais do que as ausências, predominam os
gestos, as vozes, ou os sinais num WhatsApp. Uma dor por mal-entendidos pode
ser curada com a palavra certa; uma ilusão alegrinha pode virar ferida, mas a
gente nunca tem certeza...
Esse berço, esse colo ou esse peso chamado família pode
magoar, irritar e salvar se tivermos a sorte de nascer num grupo amoroso. Nas
horas mais escuras, essa rede pode nos impedir de cairmos no alçapão embaixo do
poço. Nada como lembrar brincadeiras infantis entre irmãos, carinho de pais
abrindo a porta com braçadas de orquídeas, dessas pequenas meio silvestres que
florescem presas aos troncos das árvores no jardim. Nada como jogar conversa
fora com quem se recorda, e nada como semear recordações futuras para os que,
tão jovens, ainda nem têm passado.
Não sei onde foi parar aquele grande espelho, com um raro tom
rosa-antigo. Quem sabe ainda estamos lá, presos: imortalizados os momentos
felizes, os risos, brindes, lágrimas - e todos nós, como éramos um dia.