Estamos estranhos.
Cada vez mais. Imersos na dinâmica de inúmeras derivações prefixais, seguimos
indispostos à consciência. Desvivendo, desumanos, desregrados, despreparados,
desleais.
Des à frente de
valores fundamentais, des à frente de verbos essenciais à maturidade humana.
Enquanto o outro
nos fala, digitamos um texto a alguém que está distante. E ainda oferecemos
consolo ao que está diante de nós. “Pode falar que eu estou te ouvindo”. Não,
não estamos ouvindo. Estamos no protagonismo do embuste que nos desensina as
regras do encontro.
Estamos
desertados, devassados. Assustadoramente devassados. Perdemos a medida do que
deveria pertencer somente a nós e do que deveria pertencer somente ao outro.
Registramos. A tudo registramos. Alucinadamente registramos. Como se pessoas
fossem monumentos públicos, como se todos estivessem dispostos a viver os
excessos de nossa publicidade, como se todos estivessem sob a proibição da
intimidade. Tudo para nossa promoção, manutenção de um mundo paralelo que
cumpre a função de nos conceder o privilégio de prevalecer, ainda que por
alguns instantes, sobre os outros que buscam o mesmo disparate que nós. As
praças virtuais modernas substituíram as praças medievais da inquisição.
Purgamos nossos
pecados nos escolhidos ao achincalhamento de cada dia. Um eleito qualquer na
fogueira virtual, pego por alguém qualquer que filmava o particular que não lhe
pertencia, e todos ficarão esquecidos temporariamente de suas mazelas. Queimar
o outro nos ajuda a dar disfarce aos mesmos crimes que cometemos, mas que não
foram deflagrados.
Estamos
desmedidos. Na ânsia de sermos notados, inventamos motivos, fingimos alegrias,
expomos os incapazes, criamos intrigas. Tudo porque não suportamos o vazio
causado por nossos des. Tudo porque estamos fartos e cansados da
superficialidade que condena nossa rotina.
Estamos
desprovidos. De consistência, bom senso, delicadeza, educação.
Que o tédio nos
chegue a galope. Que a saturação nos venha antes que o absurdo se torne
natural. A desconstrução é doída, mas necessária. Colocar o des à frente de
conjugações que favoreçam a nossa humanização.
Desmentir,
desestruturar, desobedecer a tudo o que nos idiotiza e nos despersonifica. Que
a redenção nos chegue pelos braços da reflexão. Somente quando pensamos a vida
que vivemos é que podemos interferir no como vivemos.