"Ando no rastro dos poetas, porém descalça... Quero sentir as sensações que eles deixam por ai"



domingo, 28 de agosto de 2016

nunca fui


Nunca fui de fritura, mas desde que o gastroenterologista me disse que eu não poderia comer nada frito, passo o dia descobrindo novos lugares para me entupir de bolinhos de bacalhau, bolinhos de arroz, batatas de lanchonete e pasteis de feira.

Nunca fui de doces, mas desde que minha neurologista disse que eu pioraria das enxaquecas ao consumir açúcar, virei uma compulsiva por tapioca de doce de leite, bolo de cenoura com calda de chocolate e qualquer coisa da Lindt que apareça na minha frente.

Nunca fui de curtir a vida, mas desde que meu ginecologista falou que “é agora ou nunca pra ter filho” já tentei dançar hip-hop, fumar maconha, ficar fortemente alcoolizada, fazer festas em minha residência (fazer festas!), abrir espacate nas festas (ir a festas!) e me separar 28 vezes (não aguentando e pedindo desesperadamente pra voltar no segundo dia).

Nunca fui de me abandonar em um sofá por 14 horas seguidas, mas desde que minha fisioterapeuta disse que não existe nada pior pra coluna do que se abandonar em um sofá por 14 horas seguidas, nunca mais parei de assistir absolutamente toda a programação da Netflix, do Now e da AppleTV. Fora as coisas que eu jamais farei, como baixar filmes de forma ilegal. Tem sempre alguém que baixa pra mim e me amarra no sofá, daí sou obrigada a assistir.

Nunca fui de cagar uma tronca amestrada e gigantesca para esses seres maravilhosos mais conhecidos como o resto da humanidade, mas desde que meu analista me disse que amadurecer é prestar mais atenção nos outros, sou capaz de ficar um dia inteiro pesquisando no Google minúcias gritantemente específicas e autocentradas do tipo “cantinho de unha inflamado” ou “pinta pequena dedinho do pé”.

Nunca fui de gastar dinheiro com supérfluos, mas desde que meu advogado me disse “segura tua onda porque a coisa vai feder muito pra quem trabalha com cinema” já comprei três jaquetas pretas de couro ridiculamente iguais, mais uma poltrona fashion pra fazer companhia pra outras duas poltronas fashion que não cabem na minha casa e entrei para aquele mailing da loja Antônio Bernardo que te faz receber 765 correspondências por semana.

Nunca fui libertina, mas desde que minha psiquiatra falou que esse remédio invalidaria minha libido passei a flertar em silenciosa intensidade com qualquer coisa que se mova, incluindo aí o boneco abestalhado do posto de gasolina e a cancela automática do Sem Parar.

Nunca fui de ler contratos, mas desde que meu agente me disse que eu já tinha perdido uns três apartamentos com varanda gourmet em Moema, eu passei a não ler nem contratos e nem jornais e nem livros e nem mensagens no celular (porque eu só gravo voz e só me relaciono com quem grava voz). Minha especialidade agora são bulas de relaxantes musculares, memes “Fora, Temer” e o que as famosas fazem quando o bigode chinês fica muito profundo.

Nunca fui falsa, mas desde que minha tia me segurou pelos ombros e falou que eu merecia tudo de bom porque sou uma pessoa cheia de luz que fala o que pensa, jamais pude parar. Ela não estava com bafo esse dia, por exemplo. Ela não enche o mundo com frases que não dizem nada e que são iguais as todas as outras frases que não dizem nada e que me enchem de um vazio azedo. Eu estou melhor e sou tão grata por tudo. Que fase maravilhosa essa.