"Ando no rastro dos poetas, porém descalça... Quero sentir as sensações que eles deixam por ai"



sábado, 5 de março de 2016

quando Deus aparece



Há um tempo li uma crônica da escritora gaúcha Martha Medeiros e deparei-me com uma expressão que não se encontra com frequência: “nestas horas Deus aparece”. A frase dita por uma amiga da escritora, quando ouvia o recital do pianista Nelson Freire no Theatro São Pedro em Porto Alegre (RS), despertou em mim uma realidade que sempre me fascinou: a certeza da presença de Deus no cotidiano.

Martha não professa alguma religião, contudo, o que a amiga dela disse calou fundo a ponto de não se conformar em ficar para si aquela frase. Transformou-a numa crônica. No texto, ela detalha experiências que a fizeram entender que o divino mora ao lado, e que se revela nas miudezas da vida. Basta apenas termos a sensibilidade de o acolher “como se fosse a chegada de uma visita ilustre, que dá sossego à alma”, bem fala a cronista gaúcha.

Pelo olhar da fé que carrego comigo digo que de fato é uma visita ilustre e que um dia chegou em minha vida como alguém que chega pra ficar. No entanto, sabemos da existência de pessoas que não tem a facilidade de dizer que Deus existe ou faz visitas diárias ao ser humano, e vivem na indiferença da crença. A estes, desejo que um dia abram a porta para receberem com carinho este visitante, o convidem para tomar um café e se preparem para dar boas gargalhadas. Lágrimas também farão parte do encontro, quando ele começar a contar histórias emocionantes de seu amor pela humanidade e do quanto segura nos braços os errantes pelo caminho.

Deus e suas chegadas sempre são surpreendentes. Estes dias andando por lugares na grande cidade de São Paulo, ele me visitou com frequência. Diariamente nas avenidas onde encontrava pessoas numa correria que eu condenava e me via correndo também, eu o percebi apressado atrás de mim como quem não deseja perder a possibilidade do encontro. No desespero me segurou pelo braço e disse: “onde é que você vai com tanta pressa? Se eu posso te pedir alguma coisa, peço apenas para ter mais calma”.

Quando me distraio encontro ele numa idosa que entra no vagão do metrô e auxiliada por uma mulher mais jovem senta no assento reservado para sua condição. Vejo um homem a contempla-la e tento decifrar o seu olhar. Parecia perceber a fragilidade que ali transparecia no corpo daquela senhora, nos traços da matéria que resguardava histórias sabidas e ocultas. Deus esteve no metrô e me recordou a fugacidade da vida e o cuidado que necessitamos.

Certo dia num menino sem o braço esquerdo que todas as manhãs passava por mim em sentido contrário, alegre, ouvindo música e cantarolando quando eu ia para a faculdade, o divino resolveu me falar dos nossos sorrisos que escondem dores desconhecidas. Disse-me da tarefa diária que estabelecemos para ofuscar tristezas reveladoras de quem somos. Por detrás da vibração da música os silêncios monocórdicos que os outros não conhecem. Ali, vi também a alegria de quem se vê maior que seus limites.

Encontrei Deus no barbeiro que ficou encantado porque comecei a puxar conversa enquanto realizava o ofício de corte. Com ele o transcendente não mediu esforços para me dizer que deseja atenção. Na reclamação do jovem de que a maioria das pessoas apenas sentavam, falavam o tipo de corte desejado e algumas vezes reclamavam do ambiente sem o ar condicionado, Deus me alertou do quanto somos capazes de esquecer as pessoas e ver apenas sua função. Perdemos o significado em nome da utilidade.

Uma noite Deus se aproximou de mim numa grande parcela de jovens bebendo numa das mais movimentadas avenidas da cidade. Já no início da noite muitos não conseguiam nem segurar em si mesmos em pé. Vi Deus dolorosamente perdendo a sua dignidade por meio dos copos de álcool que eram sinais de divertimento.

Além destes encontros que tive com ele, eu o recebo nas pessoas leves que com seu jeito tranquilizam as dores da minha condição humana. O encontro em olhares que não condenam e enxergam além do que se pode ver. O experimento feito criança, nos braços amigos transmissores de conforto, quando o que mais precisamos é de colo de mãe. E claro, nos puxões de orelha vindos daqueles que nos amam e nos alertam para endireitarmos o prumo e tomar juízo na vida.

No cinema o vejo com frequência, narrado em histórias que ilustram um mundo de tramas existenciais manifestadoras de quem somos ou gostaríamos de ser. Em livros, textos e poesias que nos devolvem a nós mesmos ou que nos roubam um pouco para realizar a devolução mais adiante. Volta e meia as músicas carregadas de arte em letras e melodias que nos envolvem, trazem Deus aos meus ouvidos. Nesses momentos, o experimento quietinho no meu canto, prestando atenção em cada palavra, como um jovem encantado pelos conselhos e experiências de vida de um ancião.

Tenho a graça de me deparar com Deus na vida de muitas pessoas que com um brilho nos olhos, me contam seus encontros com ele. É tão belo quando nas entrelinhas das falas, me dizem: “Deus esteve aqui.” Por vezes, ele chega pelos desafios da vida, em instantes que nos desinstalam e pedem coragem para permanecermos ao seu lado, atentos ao que tem a nos dizer naquela hora.

Não quero nunca perder a oportunidade de me encontrar com aquele que chega para conversar de existências. Cuido-me para não estar distraído quando ele passar. Ele me faz tão bem que não hesito em deixá-lo esperando do lado de fora. Largo os meus afazeres humanamente urgentes e vou ansioso esperá-lo na frente de casa. No fim da visita, ainda fascinado pelo momento, o contemplo e olho fixamente pra ele. Consigo expressar apenas uma frase: “volte sempre.” 

__Evandro Viana Carvalho