Há um tempo li uma crônica da escritora gaúcha Martha
Medeiros e deparei-me com uma expressão que não se encontra com frequência:
“nestas horas Deus aparece”. A frase dita por uma amiga da escritora, quando
ouvia o recital do pianista Nelson Freire no Theatro São Pedro em Porto Alegre
(RS), despertou em mim uma realidade que sempre me fascinou: a certeza da
presença de Deus no cotidiano.
Martha não professa alguma religião, contudo, o que a amiga
dela disse calou fundo a ponto de não se conformar em ficar para si aquela
frase. Transformou-a numa crônica. No texto, ela detalha experiências que a
fizeram entender que o divino mora ao lado, e que se revela nas miudezas da
vida. Basta apenas termos a sensibilidade de o acolher “como se fosse a chegada
de uma visita ilustre, que dá sossego à alma”, bem fala a cronista gaúcha.
Pelo olhar da fé que carrego comigo digo que de fato é uma
visita ilustre e que um dia chegou em minha vida como alguém que chega pra
ficar. No entanto, sabemos da existência de pessoas que não tem a facilidade de
dizer que Deus existe ou faz visitas diárias ao ser humano, e vivem na
indiferença da crença. A estes, desejo que um dia abram a porta para receberem
com carinho este visitante, o convidem para tomar um café e se preparem para
dar boas gargalhadas. Lágrimas também farão parte do encontro, quando ele
começar a contar histórias emocionantes de seu amor pela humanidade e do quanto
segura nos braços os errantes pelo caminho.
Deus e suas chegadas sempre são surpreendentes. Estes dias
andando por lugares na grande cidade de São Paulo, ele me visitou com
frequência. Diariamente nas avenidas onde encontrava pessoas numa correria que
eu condenava e me via correndo também, eu o percebi apressado atrás de mim como
quem não deseja perder a possibilidade do encontro. No desespero me segurou
pelo braço e disse: “onde é que você vai com tanta pressa? Se eu posso te pedir
alguma coisa, peço apenas para ter mais calma”.
Quando me distraio encontro ele numa idosa que entra no vagão
do metrô e auxiliada por uma mulher mais jovem senta no assento reservado para
sua condição. Vejo um homem a contempla-la e tento decifrar o seu olhar.
Parecia perceber a fragilidade que ali transparecia no corpo daquela senhora,
nos traços da matéria que resguardava histórias sabidas e ocultas. Deus esteve
no metrô e me recordou a fugacidade da vida e o cuidado que necessitamos.
Certo dia num menino sem o braço esquerdo que todas as manhãs
passava por mim em sentido contrário, alegre, ouvindo música e cantarolando
quando eu ia para a faculdade, o divino resolveu me falar dos nossos sorrisos
que escondem dores desconhecidas. Disse-me da tarefa diária que estabelecemos
para ofuscar tristezas reveladoras de quem somos. Por detrás da vibração da
música os silêncios monocórdicos que os outros não conhecem. Ali, vi também a
alegria de quem se vê maior que seus limites.
Encontrei Deus no barbeiro que ficou encantado porque comecei
a puxar conversa enquanto realizava o ofício de corte. Com ele o transcendente
não mediu esforços para me dizer que deseja atenção. Na reclamação do jovem de
que a maioria das pessoas apenas sentavam, falavam o tipo de corte desejado e
algumas vezes reclamavam do ambiente sem o ar condicionado, Deus me alertou do
quanto somos capazes de esquecer as pessoas e ver apenas sua função. Perdemos o
significado em nome da utilidade.
Uma noite Deus se aproximou de mim numa grande parcela de
jovens bebendo numa das mais movimentadas avenidas da cidade. Já no início da
noite muitos não conseguiam nem segurar em si mesmos em pé. Vi Deus
dolorosamente perdendo a sua dignidade por meio dos copos de álcool que eram
sinais de divertimento.
Além destes encontros que tive com ele, eu o recebo nas
pessoas leves que com seu jeito tranquilizam as dores da minha condição humana.
O encontro em olhares que não condenam e enxergam além do que se pode ver. O
experimento feito criança, nos braços amigos transmissores de conforto, quando
o que mais precisamos é de colo de mãe. E claro, nos puxões de orelha vindos
daqueles que nos amam e nos alertam para endireitarmos o prumo e tomar juízo na
vida.
No cinema o vejo com frequência, narrado em histórias que
ilustram um mundo de tramas existenciais manifestadoras de quem somos ou
gostaríamos de ser. Em livros, textos e poesias que nos devolvem a nós mesmos
ou que nos roubam um pouco para realizar a devolução mais adiante. Volta e meia
as músicas carregadas de arte em letras e melodias que nos envolvem, trazem
Deus aos meus ouvidos. Nesses momentos, o experimento quietinho no meu canto,
prestando atenção em cada palavra, como um jovem encantado pelos conselhos e
experiências de vida de um ancião.
Tenho a graça de me deparar com Deus na vida de muitas pessoas
que com um brilho nos olhos, me contam seus encontros com ele. É tão belo
quando nas entrelinhas das falas, me dizem: “Deus esteve aqui.” Por vezes, ele
chega pelos desafios da vida, em instantes que nos desinstalam e pedem coragem
para permanecermos ao seu lado, atentos ao que tem a nos dizer naquela hora.
Não quero nunca perder a oportunidade de me encontrar com
aquele que chega para conversar de existências. Cuido-me para não estar
distraído quando ele passar. Ele me faz tão bem que não hesito em deixá-lo
esperando do lado de fora. Largo os meus afazeres humanamente urgentes e vou
ansioso esperá-lo na frente de casa. No fim da visita, ainda fascinado pelo
momento, o contemplo e olho fixamente pra ele. Consigo expressar apenas uma
frase: “volte sempre.”
__Evandro
Viana Carvalho