"Ando no rastro dos poetas, porém descalça... Quero sentir as sensações que eles deixam por ai"



quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

cinzas de um carnaval


Havia uma inquietação no ar. Alguma coisa misteriosa que impulsionava maus presságios. Vestígios da noite passada ainda compunham o cenário do quarto. A presença toda dele depois de tanta ausência. Os dois recém-saídos da mesma história, reféns de seus afetos, carências e, novamente, aquela urgência e a fome um do outro sendo consumada naquele espaço. Não sabia ao certo como foram parar ali, quem propôs o quê, quem pagou o táxi. Fora a quantidade de preservativos usados, pouca coisa tecia um detalhe ou outro. Olhou ao redor, o corpo afundado na cama, uma indisposição de retornar à rotina, a preguiça de fazer um café amargo pra curar a ressaca. Cortinas fechadas, um fiapo de dia recortava desenhos na parede azul. Em algum momento quis olhar pela janela: a paisagem cinza, não havia sol. E o passado instalado ao lado direito da cama, impregnando o lençol com o cheiro dele tão familiar, quase esquecido.

Relembrando o encontro na noite anterior nem sabia que quando o viu ainda havia um pingo de saudade daqueles olhos bêbados. Estavam alegres no mesmo bloco, amigos perdidos na multidão. Fizeram-se companhia e depois do gole na bebida quente, um beijo. Cansados, sentaram na areia contemplando o mar e dissertaram brevemente sobre suas vidas: tanto tempo, outros namoros terminados, referenciais desfeitos, uma ou outra paixão platônica, mas nada tão intenso, tão estável, duradouro.

“Você encontrou, finalmente, a sua mulher ideal?”... Sim, mas a perdi de vista quando não acreditei que eu a merecia”... E você, amou alguém?”... “Talvez, parece que depois que acaba não se sabe mais ao certo o que nos uniu”.

Ele ainda dormia quando debruçou seus olhos naquela imagem e sentiu um restinho de saudade de abraçá-lo como antes, de encaixar-se naquele corpo, abandonada. Ele abriu os olhos. Aqueles olhos bêbados. Em seguida abriu um sorriso, os braços e a puxou pra perto. Beijou sua testa, seu rosto e disse um “bom dia” preguiçoso antes de vestir a roupa com uma expressão impune. A gente se vê...”, disse juntando a chave, a carteira, o celular... Te ligo qualquer dia desses...” fechando a porta atrás de si. Deixou-a com a frase evasiva ecoando, costurando desfechos. Deixou uma inquietação que se pensava superada. Agora restava recomeçar algo que parecia ter completado: teria que recomeçar a esquecê-lo.

Afundou a cabeça no travesseiro, cobriu o rosto com o lençol e tentou retomar a consciência de que os elementos que tinha não eram suficientes pra recompor um romance despedaçado. Talvez apenas lhe rendesse mais um desses poemas que doem.