Quem é dono do que acontece dentro de você?
Sua história passa por dentro do seu corpo. Você é dono de
seus arranhões e também das contusões conquistadas em subidas em árvores e
quedas de escadas. Dono das cicatrizes externas e internas, dos enjoos de
nervosismo diante das broncas do pai, do primeiro pedido de namoro, das provas
do vestibular.
Você é dono do seu joelho, do seu cotovelo, do seu estômago,
da sua hérnia, da sua pedra no rim. É sua a hepatite, é sua a corrente
sanguínea, a adrenalina por ter escapado
por pouco de um assalto ou de um acidente.
Você é dono da sua taquicardia na hora de uma entrevista de
emprego, você responde pelos quilos a mais depois de passar o fim de semana
pulando de um churrasco para uma feijoada. Seus dentes são seus. Sua língua.
Seu beijo.
Dentro do seu corpo estão as lágrimas represadas por dores
que você esconde embaixo da pele. Esse
tumor desgraçado é seu. Essa alegria
infinita é sua. Você pensa porque tem um
cérebro aí dentro que não é de ninguém
mais. Você resolve para onde olhar com seus olhos, o que segurar com suas mãos,
com quem compartilhar seu sexo. Você pode vender seu corpo, mas nunca precisou
comprá-lo, tem a posse gratuita, legítima, vitalícia e intransferível.
Intransferível.
Através do corpo, você exerce as duas coisas que movem sua
vida: o querer e o não querer. Se você deseja, se você resolve, se você
pretende, é com o corpo que alcançará seu destino. E você também é dono da sua
paralisia, se assim preferir. Tudo o que você sente, tudo o que você é, vem aí de dentro. O que você quer
expelir e o que você quer cuidar. Músculos e sentimentos na mesma caixa-forte.
Você aborta se quiser. Ou gera se quiser. O corpo é seu. O
embrião é seu. A história
de vida é sua.
Políticos são eleitos para garantir às pessoas (a partir do
nascimento, quando se tornam seres sociais) segurança, habitação, transporte,
educação, saúde e trabalho. O querer e o não querer de cada um são privados. O
que cada mulher traz dentro do próprio corpo é dela, não do Estado.
Não bastasse o aborto ser proibido, agora querem
transformá-lo em crime hediondo. Um
político, que é um cidadão qualquer, tem o poder de decidir sobre o corpo da
minha filha e o corpo da sua. Não importa a vontade delas próprias, suas
questões emocionais, psicológicas, íntimas. Não interessa a idade que elas têm,
se são religiosas ou ateias, se estão empregadas ou desempregadas, se já são
mães de sete ou se jamais quiseram ser mães. Não lhes dão o direito ao medo,
nenhum privilégio pela ordem de chegada, adeus ao livre-arbítrio. Engravidaram
e, a partir de então, não são mais elas que escolhem.
O querer e o não querer mais pessoais do mundo, administrados por quem não tem absolutamente nada a ver com o assunto.
O querer e o não querer mais pessoais do mundo, administrados por quem não tem absolutamente nada a ver com o assunto.