40°C. Patrão e patroa acompanhavam
a novela das nove na sala, e só reclamavam do calor. Já estavam com aquela
tosse alérgica. O ventilador fazia mais barulho do que vento. As janelas
abertas apenas carregavam mosquitos. Eles não se concentravam no som das imagens
por absoluta apatia. As pálpebras tremiam de cansaço. O véio aproveitou o
comercial e pediu licença para sua véia.
– Vou dar um pulo
na garagem e já volto.
– Tudo bem,
meu véio, não demora, que é tarde.
Quarenta minutos, e nada do véio voltar.
A véia pensou
duas vezes antes de levantar da cadeira. A velhice é minimizar os esforços:
quando se senta, não se levanta por qualquer coisa.
Mas a preocupação
tomou conta, estava virando aflição, terço, coceira de aliança.
O que será que
aconteceu? Desceu a pequena escada até a garagem.
Encontrou o véio
misteriosamente trancado no carro. Coisa esquisita. Será que foi se matar? Ela
se lançou a abrir a porta, com a respiração ofegante.
Então, de olhos
fechados, o véio levou um tremendo susto, como que pego em flagrante.
– O que está
fazendo aí dentro?
– Não aguentei o
calor, e vim descansar com o ar-condicionado.
O véio tinha aquele rosto culpado de cachorro que comeu o osso alheio. Tanto que se encolheu para dar a resposta.
A véia avermelhou
as bochechas. Aquela mulher era muito temperamental. Geniosa. Indomável.
Mas em vez de
xingá-lo, disse com toda a ternura:
– Mas por que
você não me chamou?
Diante do encolhimento de ombros do marido, ela sumiu por instantes e voltou arrastando um lençol e travesseiros.
Entrou ao lado do
véio, deitou na cadeira e falou:
– Pode dirigir
meus sonhos. Será nossa segunda viagem de lua de mel, nosso segredo.
Passaram a madrugada sob a refrigeração do veículo. Esqueceram a previsão do tempo. Esqueceram o inferno. Esqueceram o terror da insônia. Esqueceram os pijamas empapados de suor. Esqueceram a sede. Esqueceram as lamúrias.
Esticados, cada
um em sua poltrona, roncaram com surpreendente tranquilidade.
Não dormiram de
conchinha.
As pontas dos
dedos se tocaram amorosamente ao longo da noite.
Não dormiram de
conchinha, mas de estrela-do-mar.
PS: Isso é uma peça de ficção para retratar o calor em quase todo Brasil. Não
vá fazer o mesmo. Carro ligado em garagem fechada é perigoso.