"Ando no rastro dos poetas, porém descalça... Quero sentir as sensações que eles deixam por ai"



quinta-feira, 16 de outubro de 2014


40°C. Patrão e patroa acompanhavam a novela das nove na sala, e só reclamavam do calor. Já estavam com aquela tosse alérgica. O ventilador fazia mais barulho do que vento. As janelas abertas apenas carregavam mosquitos. Eles não se concentravam no som das imagens por absoluta apatia. As pálpebras tremiam de cansaço. O véio aproveitou o comercial e pediu licença para sua véia.
– Vou dar um pulo na garagem e já volto.
– Tudo bem, meu véio, não demora, que é tarde.

Quarenta minutos, e nada do véio voltar.
A véia pensou duas vezes antes de levantar da cadeira. A velhice é minimizar os esforços: quando se senta, não se levanta por qualquer coisa.
Mas a preocupação tomou conta, estava virando aflição, terço, coceira de aliança.
O que será que aconteceu? Desceu a pequena escada até a garagem.
Encontrou o véio misteriosamente trancado no carro. Coisa esquisita. Será que foi se matar? Ela se lançou a abrir a porta, com a respiração ofegante.
Então, de olhos fechados, o véio levou um tremendo susto, como que pego em flagrante.
– O que está fazendo aí dentro?
– Não aguentei o calor, e vim descansar com o ar-condicionado.

O véio tinha aquele rosto culpado de cachorro que comeu o osso alheio. Tanto que se encolheu para dar a resposta.
A véia avermelhou as bochechas. Aquela mulher era muito temperamental. Geniosa. Indomável.
Mas em vez de xingá-lo, disse com toda a ternura:
– Mas por que você não me chamou?

Diante do encolhimento de ombros do marido, ela sumiu por instantes e voltou arrastando um lençol e travesseiros.
Entrou ao lado do véio, deitou na cadeira e falou:
– Pode dirigir meus sonhos. Será nossa segunda viagem de lua de mel, nosso segredo.

Passaram a madrugada sob a refrigeração do veículo. Esqueceram a previsão do tempo. Esqueceram o inferno. Esqueceram o terror da insônia. Esqueceram os pijamas empapados de suor. Esqueceram a sede. Esqueceram as lamúrias.
Esticados, cada um em sua poltrona, roncaram com surpreendente tranquilidade.
Não dormiram de conchinha. 
As pontas dos dedos se tocaram amorosamente ao longo da noite. 
Não dormiram de conchinha, mas de estrela-do-mar.

PS: Isso é uma peça de ficção para retratar o calor em quase todo Brasil. Não vá fazer o mesmo. Carro ligado em garagem fechada é perigoso.