"Ando no rastro dos poetas, porém descalça... Quero sentir as sensações que eles deixam por ai"



terça-feira, 5 de agosto de 2014

do desapego

Coloquei os fones de ouvido na sala de espera, mas o som estava desligado. Era só pra ouvir o que o paciente do horário anterior estava dizendo…

“Tia Maria morreu ontem. Irmã da vó Adelaide, da tia Ditinha e de mais uma meia dúzia de tios avós meus. Não éramos próximos, não me lembro de termos conversado muito. Lembro-me mais da polenta, do crostoli e das maria moles que ela fazia – e que eram muito bons.

“A morte da tia Maria me fez pensar um pouco sobre… bem, sobre morte. Estou longe de ser a pessoa mais religiosa do mundo. Bem longe mesmo. Não acredito em Deus – não nesse em que o povo fala que acredita, aquele homenzarrão implacável e barbudo vestindo camisola –, mas tenho cá minha fé. Minha religião é o trabalho. Prefiro transferir o rigor da oração para o labor. É o que me faz bem – e ainda me rende algum dinheiro.

“Ver a vó Adelaide triste daquele jeito me doeu. Ora, muito natural que a gente fique doído com a tristeza de quem a gente gosta. Aí depois conversei com meu pai sobre a tradição católica do velório e como isso estava ficando ultrapassado, até que chegamos na questão do apego à matéria. Comecei a pensar sobre como a gente se prende às coisas e como é difícil se desapegar delas depois que elas não fazem mais parte da nossa vida.

“Viver é se apegar. A gente vai vivendo e vai fazendo amigos, comprando coisas, aprendendo a fazer outras coisas e vai acumulando tudo isso, vai se conectando com esses objetos, com essas pessoas. Vai gostando. Aí fica muito difícil o sujeito, de uma hora pra outra, não poder mais ter aquilo de que gostava tanto. Ora, falem o que for, a gente gosta de ter e também gosta de ser tido.

“Aí comecei a pensar que existem circunstâncias muito diferentes de desapego. Tem o desapego voluntário, que é quando você percebe que não dá mais conta de conviver com uma coisa ou com uma pessoa – uma blusa que já está esgarçada, um namorado que está te esgarçando – e aí se desfaz daquilo. O desapego involuntário é quando você tem que aprender na marra a conviver sem alguma coisa ou sem alguém, que é o caso da morte. Ninguém avisa que vai morrer, faz evento no Facebook, agenda data… Puf! A pessoa morre, uai!

“E não tem jeito. Nesse caso não tem muito que se fazer e a gente acaba ficando muito triste. Um tanto porque uma parte generosa de nós fica apreensiva com a incerteza que gere o rumo de quem o do que se foi e outra parte, mais egoísta, que fica contrariada porque não gosta de perder. E é essa parte que ainda mantém refém dentro da gente um restinho daquilo que não nos é mais familiar.

“Acho que a coisa mais cruel pra quem fica é ter que matar a pessoa que morreu. Sim, porque até a gente matar a pessoa, fica aquela sensação de que a gente vai virar a esquina e trombar com ela, sabe? Não é bacana… a gente fica apreensivo, esperançoso, morre na praia. Daí se a gente não mata a pessoa, ela vira fantasma e passa a assombrar a gente.

“Não dá pra viver à sombra de um espírito e também não é fácil se desapegar, mas é como alguém disse uma vez: é preciso sofrer apenas o estritamente necessário”.