“Tia Maria morreu ontem. Irmã da vó Adelaide, da tia Ditinha
e de mais uma meia dúzia de tios avós meus. Não éramos próximos, não me lembro
de termos conversado muito. Lembro-me mais da polenta, do crostoli e das maria
moles que ela fazia – e que eram muito bons.
“A morte da tia Maria me fez pensar um pouco sobre… bem,
sobre morte. Estou longe de ser a pessoa mais religiosa do mundo. Bem longe
mesmo. Não acredito em Deus – não nesse em que o povo fala que acredita, aquele
homenzarrão implacável e barbudo vestindo camisola –, mas tenho cá minha fé.
Minha religião é o trabalho. Prefiro transferir o rigor da oração para o labor.
É o que me faz bem – e ainda me rende algum dinheiro.
“Ver a vó Adelaide triste daquele jeito me doeu. Ora, muito
natural que a gente fique doído com a tristeza de quem a gente gosta. Aí depois
conversei com meu pai sobre a tradição católica do velório e como isso estava
ficando ultrapassado, até que chegamos na questão do apego à matéria. Comecei a
pensar sobre como a gente se prende às coisas e como é difícil se desapegar
delas depois que elas não fazem mais parte da nossa vida.
“Viver é se apegar. A gente vai vivendo e vai fazendo
amigos, comprando coisas, aprendendo a fazer outras coisas e vai acumulando
tudo isso, vai se conectando com esses objetos, com essas pessoas. Vai
gostando. Aí fica muito difícil o sujeito, de uma hora pra outra, não poder
mais ter aquilo de que gostava tanto. Ora, falem o que for, a gente gosta de
ter e também gosta de ser tido.
“Aí comecei a pensar que existem circunstâncias muito
diferentes de desapego. Tem o desapego voluntário, que é quando você percebe
que não dá mais conta de conviver com uma coisa ou com uma pessoa – uma blusa
que já está esgarçada, um namorado que está te esgarçando – e aí se desfaz daquilo.
O desapego involuntário é quando você tem que aprender na marra a conviver sem
alguma coisa ou sem alguém, que é o caso da morte. Ninguém avisa que vai
morrer, faz evento no Facebook, agenda data… Puf! A pessoa morre, uai!
“E não tem jeito. Nesse caso não tem muito que se fazer e a
gente acaba ficando muito triste. Um tanto porque uma parte generosa de nós
fica apreensiva com a incerteza que gere o rumo de quem o do que se foi e outra
parte, mais egoísta, que fica contrariada porque não gosta de perder. E é essa
parte que ainda mantém refém dentro da gente um restinho daquilo que não nos é
mais familiar.
“Acho que a coisa mais cruel pra quem fica é ter que matar a
pessoa que morreu. Sim, porque até a gente matar a pessoa, fica aquela sensação
de que a gente vai virar a esquina e trombar com ela, sabe? Não é bacana… a
gente fica apreensivo, esperançoso, morre na praia. Daí se a gente não mata a
pessoa, ela vira fantasma e passa a assombrar a gente.
“Não dá pra viver à sombra de um espírito e também não é
fácil se desapegar, mas é como alguém disse uma vez: é preciso sofrer apenas o
estritamente necessário”.