"Ando no rastro dos poetas, porém descalça... Quero sentir as sensações que eles deixam por ai"



terça-feira, 20 de novembro de 2012

Traição e semântica


Quando alguém diz, por exemplo, "João traiu Renata", a primeira coisa que me vem à cabeça é que João espalhou um segredo cabeludo que Renata havia lhe confiado, ou então que João entregou Renata para a polícia, ou ainda que João fugiu com todo o dinheiro que Renata havia economizado, que crápula.
Nunca penso que João transou com outra mulher.

Trair pressupõe que algo foi feito contra alguém. E sexo não é algo que seja feito contra uma terceira pessoa.
Sexo é sempre a favor, sempre pró, e sempre egoísta "não diz respeito a quem ficou do lado de fora do quarto".
Faz-se sexo para dar e receber prazer, e não para prejudicar quem quer que seja.
Traição é uma palavra dura demais para ser usada como sinônimo de infidelidade e adultério.

A palavra adultério é até romântica, remete à encontros clandestinos, beijos roubados, vidas secretas, roteiros de cinema, letras de samba.
O adúltero "apesar de ter que carregar este palavrão nas costas" é na verdade um alegre.

Infidelidade já é uma palavra mais burocrática, boa para ser usada em tribunais, alegar quebra de contrato.
É palavra comprida e possui um certo status, parece coisa de estelionatário graúdo, gente com conta em paraíso fiscal.
Pensando bem, conta em paraíso fiscal é uma metáfora que se aplica perfeitamente a romances paralelos.
Mas estelionato é crime, e infidelidade não é.
O infiel é um inofensivo, vende fácil seus carros usados.

Os infiéis não metem medo, os adúlteros possuem um charme boêmio, então, na falta de uma palavra mais intimidante, apela-se para "traidores", a fim de arrancar deles alguma culpa, remorso, vergonha.
Mas que ninguém se engane: a palavra traição está combinando cada vez menos com a realidade sexual vigente.
Ninguém está batendo palmas aqui para a poligamia.
Estou apenas refletindo sobre a adequação e a inadequação de certos vocábulos.
Traição? Convém enfrentar os revezes amorosos sem mexicanizar demais a cena.

No início de todo romance, homens e mulheres se satisfazem plenamente um com o outro, mas com o passar do tempo a relação passa a satisfazer apenas parcialmente, e parcialmente pode ser mais que suficiente quando inclui amizade, cumplicidade, diversão, leveza.
Porém, a parte que começa a faltar "a sedução" deixa o campo aberto para novas experiências, que podem acontecer ou não.
Nada disso tem a ver com desamor.
Pode-se amar alguém e sucumbir a uma aventura.
Não estou dizendo nenhuma novidade, estou?
Há algum inocente no recinto?

Toda traição pega você desprevenido.
A infidelidade, ao contrário, é sempre uma possibilidade, mesmo quando parece improvável.
E não, não há nenhum inocente no recinto.