"Ando no rastro dos poetas, porém descalça... Quero sentir as sensações que eles deixam por ai"



segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Da pergunta inevitável


A paixão nos contamina com uma incurável visão seletiva e nos torna patéticos e miseravelmente felizes.
Mas, como toda doença, um dia acaba. Ou mata.

Ao acordarmos entre os sobreviventes, nos rastejamos pela autocomiseração rumo à saída (desconhecida) e, talvez, alguma alegria – que, quando vem, insiste em ser tão sutil como o gosto de uma alface.
Cansados, só conseguimos mais motivos para persistir no flagelo e lastimar a súbita ruína da felicidade eterna.

Contrariando o fim do mundo pessoal, e sem notarmos, o tempo vai deixando essas sensações mais e mais dispersas.

E, num dia qualquer, desaparecem.
Ficamos curados.

Tocamos a vida, rimos do que passamos e prometemos não mais nos apaixonar.
A promessa não é cumprida, e a sensação de ser atropelado por um Scania se repete até que tenhamos o domínio sobre nossas expectativas ou que alguém faça o favor de nos dizer para deixarmos de lado a crença infantilóide de que a felicidade será entregue na porta de nossa casa por alguém lindo, inteligente, bem-humorado e charmoso – ele(a) nunca virá porque não existe.

Numa noite ou dia qualquer, surgido do nada, no meio da rua, no elevador, reencontramos sem querer (e com algum sobressalto) quem nos causou o inesquecível desprazer.
E, pela primeira vez, sentimos um desapontamento, meio inexplicável, mas bem nítido.
Durante os cinco segundos que nos separam do cumprimento, uma tonelada de sensações chegam juntas e misturadas.
Até que, de repente, olhamos para alguém muito diferente de quem nos encantou.
Um completo estranho.
Pela primeira vez, enxergamos essa pessoa despida da perfeição com a qual a envolvemos.
Despida das nossas quase arquetípicas aspirações românticas.

Então o que era quase divino se torna frustrantemente humano.
E aí, com mal-estar e um tanto de rejeição à idéia, compreendemos que a paixão é o mais narcisista dos sentimentos: nos apaixonamos pelo que queríamos que alguém tivesse, fosse, agisse, pensasse.
Nos arrebatamos por nossos sonhos projetados sobre outra pessoa – e nada pode ser mais humilhante que descobrir nossa própria fraude (a não ser perceber que tudo poderia ter sido diferente se fôssemos menos egocêntricos).

Não sabemos como agir.
É muito repentina a mudança de visão e a reação adequada ainda não se formulou.
Vendo a pessoa se aproximar, ao mesmo tempo que tentamos descobrir o que fazer, notamos pequenos detalhes até então invisíveis: o sorriso insistente, a sobrancelha direita ligeiramente mais baixa que a esquerda.
Os sapatos velhos que odiávamos mas habitavam no setor “excentricidades” agora mudam-se pro “relaxo”.
E vem o abraço.
Já não é tão forte.
Já não é tão macio.
É um abraço de festa, impessoal.
Nos vem uma certa aflição com o toque daquele corpo que já não reflete nosso desejo.

Onde foram parar o brilho, a beleza tão particular, a presença envolvente?
Eles estão onde sempre estiveram, só que agora esperam um novo corpo pra elegerem como abrigo.
Ou um enterro oficial.

Então, passados os poucos segundos do contato, olhamos, sorrimos e lançamos um tolo “Oi!”, a única coisa que nos vem à mente.
Mas o que pensamos sinceramente, e nunca será dito, é: “Como eu pude?”