"Ando no rastro dos poetas, porém descalça... Quero sentir as sensações que eles deixam por ai"



sábado, 26 de novembro de 2011

Do anonimato



- Alô?
- “A sua lembrança me dói tanto, eu canto pra ver se espanto esse mal...” *
- Quem tá falando?
- “Mas só sei dizer um verso banal. Fala em você, canta você, é sempre igual...”

Houve uma época em que os telefones sabiam guardar segredos.
Não havia bina ou celulares, e uma mulher podia receber ligações apaixonadas de um desconhecido.
Hoje, os telefones odeiam os amores secretos.
São insuportavelmente indiscretos e mal amados.
Naquela época tínhamos a cumplicidade da telefonia.
Éramos quatro ou cinco amigos.
Fazíamos dezenas de ligações, e em todas elas eu tocava sempre a mesma música.
Jamais alguma das mulheres desligou.
Todas ouviam até o fim a canção Desencontro, de Chico Buarque.

Cada um de nós tinha direito a escolher uma mulher para quem ligar.
Minha função era tocar e cantar.
Os outros escolhiam as mulheres, ligavam e ficavam na torcida para que elas não desligassem antes do fim da canção.
A curiosidade feminina não lhes permitia desligar.
A maior parte delas ouvia no mais absoluto silêncio.
Algumas poucas não conseguiam ouvir até o fim sem perguntar várias vezes quem era.

- Alô?
- “Sobrou desse nosso desencontro um conto de amor sem ponto final...”
- Quem tá falando?
- “Retrato sem cor jogado aos meus pés...”
- Faaala!!
- “E saudades fúteis, saudades frágeis, meros papéis...”

De nada adiantava perguntar.
Não obtinham nada além da canção.
No final apenas desligávamos.
Era verdadeiramente lindo.
A loucura era tanta que, quando não tínhamos mulheres específicas para quem ligar, simplesmente abríamos a lista telefônica e escolhíamos um nome feminino qualquer.
Neste caso, inclusive, eu podia estar cantando para alguma senhora com idade para ser minha avó, ou mesmo para um travesti:
- Alô?
- “Não sei se você ainda é a mesma...”
- Não, não, eu mudei bastante, você não me reconheceria mais.

Ou então, para algum pai descontrolado de ciúmes:
- Alô?
- “Ou se cortou os cabelos, rasgou o que é meu...”
- Vou te rasgar é de faca, seu vagabundo!

Absurdos a parte, assim corriam nossas noites, entre desencontros, whisky, telefonemas e o violão.
Fico agora imaginando o que se passou na cabeça de cada uma das mulheres para quem ligamos. Considerando que todas ouviram até o fim, suponho que tenham gostado.
Sendo assim, quantas devem ter perdido a noite imaginando quem seria o apaixonado?
Quantas se viram subitamente recuperadas de alguma desilusão amorosa?
E quantas não devem ter caído doente com febre e tremores?
Não sei a quantas delas fizemos bem ou a quantas fizemos mal.
Não sei se Chico Buarque e seu Desencontro funcionariam hoje nesses tempos de celular, bina, axé e música sertaneja.
 Não sei de nada.
Sei apenas que cantei milhões de vezes Desencontro sem ter a mínima idéia de quem estava do outro lado da linha.
E repito: nenhuma jamais desligou.
- Quem tá falando? Por favor, quem tá falando?
- “Se ainda tem saudades e sofre como eu, ou tudo já passou, já tem um novo amor, já me esqueceu.”

= Osias Canuto =

* Desencontro - Chico Buarque